sábado, 2 de abril de 2011

Garoa

Acordou. Acordou e pensou sobre a vida, sobre as lembranças. Permaneceu em seu conforto por alguns minutos, desejando que fossem horas - mas não foram. Foi perturbado; o tiraram de seu conforto. Não tinha certeza se chovia do lado de fora.
Teve um dia atípico. Viu os estragos da noite, da tempestade. Viu o ferro retorcido, as telhas estilhaçadas e os galhos quebrados pelas ruas. Cenas que restaram das horas de meia luz, das horas a luz de velas, onde sempre metade de todos os corpos estavam obscurecidas, incertas, imersas nas incertezas.
À noite, saiu com conhecidos. Bons conhecidos. Teve boas conversas. Conversas despretenciosas, onde tudo era tão sereno, mas algo parecia errado, não só parecia; estava errado. Sentiu medo, um medo infantil somado à saudade que nutria por tempos passados que não estarão a voltar. Tudo parecia tão inverossímil.

[Pausa]

Andou.
Andou e aceitou aquilo sem aceitar. Era difícil demais aceitar algo tão simples. Seguiu andando.
Andou em ruas sujas, embaixo de marquises. Olhou para cima e as luzes dos postes que iluminavam as ruas e as avenidas tinham uma luminescência diferente aquela noite. Pareciam uma fotografia tirada em tons de sépia. Enquanto isso seus sentidos pareciam confundir-se em apenas um, pareciam uma resposta aos sentimentos imprecisos que por sua vez também fundiam-se.
O tempo desacelerava sem que soubesse. A garoa batia fria em seu rosto. Andava, andava ao passo que pensava sobre a garoa: esta garoa que cintilava um brilho que não era seu, mas da luz sépia dos postes, esta garoa que dançava criando ondas belas conforme a brisa ligeiramente fria soprava, esta garoa que só permitia que sua beleza fosse vista quando havia alguma luz atrás. Esta garoa tão fina, aglomerada. Garoa tão densa mas pulverizada, pulverizada como os sonhos de criança, que vieram e se foram, que com o tempo, após serem frustrados, deram lugar a um conformismo sóbrio.
Se viu à espera do próximo ônibus. A quanto tempo não se sentia assim?
Dentro do ônibus, sentado no último assento, observava a densa garoa que abraçava a cidade, observava as luzes cintilantes, às vezes inebriantes, outras vezes ofuscantes, às vezes outras, por vezes, que vezes, quais vezes... o mundo que o cercava parecia distorcer-se.

A voz gravada divulgava a próxima parada.
Desceu.
Correu.
Perdeu.
Não entendeu. Lá não havia garoa, não havia luz sépia, não havia nada mais. A realidade voltara ao normal.
Entrou no outro ônibus, mais uma vez, sentado no último assento continuou entretido em seus pensamentos. Algo ainda não estava certo. Talvez não fosse culpa da garoa seu estado de humor, talvez desejasse a garoa, talvez precisasse de um abraço, um abraço daquela garota com quem sonhara na noite anterior. Sim, devia estar com aquela garota numa noite envolta de densa garoa.

Desceu do ônibus, andou através das gotículas finais do chuvisco que terminava, chegou. Tudo parecia diferente, ainda que tivesse voltado ao normal.
Talvez ainda não tivesse acordado. Precisou acordar.

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