sexta-feira, 15 de abril de 2011

voltar.

Até que ponto o sentimento é real? Até que ponto o sentimento que nós sentimos é o mesmo que outras pessoas sentem em situações similares às que passamos? Ou ainda; elas sentem ou dizem que sentem? Eu e você, sentimos ou dizemos que sentimos; o sentimento existe de fato ou nós apenas acreditamos que ele existe?

Qual é a divisa - se é que há uma - que separa o saudosismo da nostalgia? Quando a lembrança do que foi e os pensamentos do que poderia ter sido todos esses anos se tornam tristeza?

Vontade de voltar atrás.
Vontade de começar de volta, de experimentar outras coisas, de ter (tido) uma outra vida.
Vontade de ter 12 anos e mudar tudo desde o início. Claro que doze anos não é o início, existem coisas antes, mas de qualquer modo, a vontade existe.
As idealizações do ruim, do mau e do mal, do bom e do bem me são tão caras que parecem ter vida própria; a vida que eu gostaria que fosse a minha própria. Ideias idealizadas, com prazo de validade onde o eterno cabe dentro dos limites. Quão glorioso seria ser um grande-pequeno ou um pequeno-grande! Ou os dois!

Grupos de amigos, uma namorada, a inocência, um prédio pequeno na fraca luz de um fim de tarde frio, a auto-afirmação, as outras mentalidades, a insegurança que dispõe de apoio. Uma caminhada ao fim de tarde na praia mesmo no frio e ao vento, o crescer, antigo novo. O carro de um executivo fazendo a curva leve num dia nublado, a garota a observar pela janela a chuva que se aproxima, o som dentro das sombras cortadas pelas luzes dos postes durante a madrugada ou pelos raios de sol alaranjados à tarde. O abraço. As idades, as tardes, as histórias e as noites; todas escritas e desenhadas na mente, porém irrealizáveis, voltar no tempo é impossível. Penso nisso e sinto mais um açoite.

A frustração, a inércia, a decepção constante, as expectativas vãs, a consciência do agora, as consciências dos agoras; todas apresentam um presente que continua a fluir e a desvendar o futuro - que por sua vez se torna presente e já passado -, apresentam um presente desagradável, sempre desagradável não importando a qual presente referimo-nos.
Esse presente desagradável já é passado. O pretérito não pode ser alterado. Apenas a memória pode. Entretanto, isso seria distorce-la, dissolve-la, tirar-lhe a cor e a textura originais. (Ora, com exceção da dor de sabermos que a verdade não foi o que se estaria a dizer em tal situação, que diferença faria dissolver as memórias, levando em conta que os sentimentos podem quase sempre ser tão falsos ou iverossímeis quanto as idealizações e as ficções?)

Vontade de nada. Como diria Nietzsche; chega-se ao ponto de querer o nada do que não querer nada em absoluto. Não há nada, senão poder. Vontade de poder.


De poder

sábado, 2 de abril de 2011

Garoa

Acordou. Acordou e pensou sobre a vida, sobre as lembranças. Permaneceu em seu conforto por alguns minutos, desejando que fossem horas - mas não foram. Foi perturbado; o tiraram de seu conforto. Não tinha certeza se chovia do lado de fora.
Teve um dia atípico. Viu os estragos da noite, da tempestade. Viu o ferro retorcido, as telhas estilhaçadas e os galhos quebrados pelas ruas. Cenas que restaram das horas de meia luz, das horas a luz de velas, onde sempre metade de todos os corpos estavam obscurecidas, incertas, imersas nas incertezas.
À noite, saiu com conhecidos. Bons conhecidos. Teve boas conversas. Conversas despretenciosas, onde tudo era tão sereno, mas algo parecia errado, não só parecia; estava errado. Sentiu medo, um medo infantil somado à saudade que nutria por tempos passados que não estarão a voltar. Tudo parecia tão inverossímil.

[Pausa]

Andou.
Andou e aceitou aquilo sem aceitar. Era difícil demais aceitar algo tão simples. Seguiu andando.
Andou em ruas sujas, embaixo de marquises. Olhou para cima e as luzes dos postes que iluminavam as ruas e as avenidas tinham uma luminescência diferente aquela noite. Pareciam uma fotografia tirada em tons de sépia. Enquanto isso seus sentidos pareciam confundir-se em apenas um, pareciam uma resposta aos sentimentos imprecisos que por sua vez também fundiam-se.
O tempo desacelerava sem que soubesse. A garoa batia fria em seu rosto. Andava, andava ao passo que pensava sobre a garoa: esta garoa que cintilava um brilho que não era seu, mas da luz sépia dos postes, esta garoa que dançava criando ondas belas conforme a brisa ligeiramente fria soprava, esta garoa que só permitia que sua beleza fosse vista quando havia alguma luz atrás. Esta garoa tão fina, aglomerada. Garoa tão densa mas pulverizada, pulverizada como os sonhos de criança, que vieram e se foram, que com o tempo, após serem frustrados, deram lugar a um conformismo sóbrio.
Se viu à espera do próximo ônibus. A quanto tempo não se sentia assim?
Dentro do ônibus, sentado no último assento, observava a densa garoa que abraçava a cidade, observava as luzes cintilantes, às vezes inebriantes, outras vezes ofuscantes, às vezes outras, por vezes, que vezes, quais vezes... o mundo que o cercava parecia distorcer-se.

A voz gravada divulgava a próxima parada.
Desceu.
Correu.
Perdeu.
Não entendeu. Lá não havia garoa, não havia luz sépia, não havia nada mais. A realidade voltara ao normal.
Entrou no outro ônibus, mais uma vez, sentado no último assento continuou entretido em seus pensamentos. Algo ainda não estava certo. Talvez não fosse culpa da garoa seu estado de humor, talvez desejasse a garoa, talvez precisasse de um abraço, um abraço daquela garota com quem sonhara na noite anterior. Sim, devia estar com aquela garota numa noite envolta de densa garoa.

Desceu do ônibus, andou através das gotículas finais do chuvisco que terminava, chegou. Tudo parecia diferente, ainda que tivesse voltado ao normal.
Talvez ainda não tivesse acordado. Precisou acordar.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sempre

...seu olhar foi ficando embaçado pelo desespero que o tomava conta e, aos poucos, voltando ao normal. Do alto, a calçada se aproximava com extrema velocidade. Estava numa corrida tétrica, apostando sua chegada ao chão contra as primeiras gotas de garoa. Uma explosão de dor agonizante que duraria por pouco tempo - pensava.

Parou.

Levantou a cabeça e olhou para os lados. O que estava a sua volta tinha congelado como numa fotografia antiga, desbotada pelo tempo. Foi clareando e tornando visível a cidade cinza. Os edifícios e as ruas e as pessoas perdidas que caminhavam como sombras caladas continuavam. Sempre continuariam não importando o que acontecesse.

Sua única saída, naquele momento, seria caminhar.

Parou na esquina.

Ninguém por perto. Quase silêncio.

Apenas o som dos galhos farfalhando na rua agora deserta, despejando lamentos em sua mente corroída por um passado incerto e sem solução.

Continuou andando cabisbaixo pela calçada. Não pensava em nada. Observava seus pés movendo-se num fluxo contínuo, seguindo sempre a mesma linha de ladrilhos.

Perturbado.

Encosta num poste. A respiração pesada. A cabeça pesada.

Num gesto mecânico puxa o cigarro do bolso. Acende. Tenta relaxar. Não consegue.

Está tenso e nem sabe o motivo. Se distrai observando a fumaça que se evola preguiçosamente pelo ar. Tenta gritar. A voz não obedece.

Sussurra:

- ...

Gosto cinza na boca.

As pessoas que há pouco tempo se encontravam vagando pelas ruelas encardidas, agora seguem outro caminho. Como se já previssem o que iria acontecer. Estavam fugindo do inevitável...

A queda gera um.

Grito vindo de baixo. E depois um.

Som seco. Também vindo de baixo.

Corpo no chão. Calçada vermelha.

Rostos curiosos aparecem nas janelas dos prédios. Feições apavoradas. Fazem o sinal da cruz em sincronia.

“Ai Jesus. Se jogou... o pobre diabo.”

Ainda encostado no poste. Finge não ligar. Mas é curioso. A morte é curiosa. Sai para ver os detalhes. Olha o sujeito com estranheza, parecendo-lhe familiar. Fica estático, sem reação.

A lágrima tenta cair ao chão.

Mas flutua, volta aos olhos.

Muda-se a cor. Escorre sangue.

A dor agora lacrimeja.

Caos da agonia interna.

Pobre existência.

Vira as costas ao corpo. Tenta pensar em algo belo, mas é incapaz. Incapaz de tudo, exceto uma única coisa.

No alto do prédio, novo adeus. Um curto passo em falso e...



A. Michalzechen