quinta-feira, 17 de março de 2011

Saltos de Cristal

Não era a primeira vez em que eu passava a noite em claro. Normalmente ficava um final de semana inteiro sem dormir, tudo pelo simples prazer do silêncio que perpetuava nessas madrugadas. A cidade inteira adormecida e eu, sentado na mesa da cozinha, escrevendo. Criando destruição e caos. No papel em branco eu era um deus. Criava por ódio e destruía por amor. Cuspia e explodia em tudo o que era mais belo. Rabiscava no mundo. É um passatempo piegas, mas levemente divertido. Uma espécie de válvula de escape que criei para abafar toda essa merda. Mas dessa vez, o que me fez ficar acordado foi ela. O único motivo dessa desgraçada madrugada. Foi ela. Saiu de casa no início da noite, e não voltou. Restou-me esperar. Esperar...

Uma aflição estranha tomou conta de mim, quando me levantei da poltrona e fui olhar da sacada do edifício em direção a rua, que insistia em continuar deserta. Como se numa última tentativa desesperada, eu fosse checar se ela estava realmente vindo. O dia já estava amanhecendo, e nada dela voltar. Passei uma noite inteira esperando e pensando nela. Não sabia realmente onde havia ido... Estava com a cabeça pesada e confusa por tamanho esforço em permanecer acordado, apenas esperançoso em ouvir o eco de seus saltos batendo no corredor. Ouvi alguns ruídos, mas não via ninguém. Talvez fosse ela vindo e, por um instante uma alegria se apossou de mim e me fez sorrir, como se apenas ouvindo aqueles ruídos, todos os problemas que confabulei naquela madrugada fossem amassados e deixados para trás. Eram da chuva, aqueles ruídos. Fiquei observando as gotas caindo fracas na rua, preenchendo antigas poças de água e, por um momento, esqueci de ter ficado a noite inteira aguardando. Ela não chegava, apenas a chuva.

Talvez tenha ficado ofendida com alguma coisa que eu devo ter dito na última noite em que passamos juntos. Realmente não me lembro. Não sou do tipo de pessoa que ofende outras por pura diversão, ainda mais ela. Mas então qual seria o motivo dessa ausência, desse abandono repentino? Cristo! Como sou dependente das mulheres. Sinto falta de ar só de pensar em viver sem elas. Mas ela, com toda a certeza que sinto em meu peito, ela era especial. Posso jurar isso. Porra. Continuo confuso, mesmo sabendo que deveria permanecer calmo e paciente. Ela disse que voltaria. Sempre disse isso. Merda e merda. Ficar esperando todo aquele tempo estava me deixando enjoado. Tive a impressão de que tudo aquilo não passava de um pesadelo. Acendi outro cigarro e fiquei observando novamente a rua. A chuva já tinha cessado, mas o céu continuava cinza, como se até o tempo estivesse afogando minha esperança de tê-la em meus braços.

Pude ouvir o movimento prematuro de carros circulando pela região. Já havia indícios de uma cidade acordando. Motores ligando, buzinadas e arrancadas de pneus. A vida continuava.

Foi quando decidi que não deveria mais ficar enclausurado naquele apartamentinho. Resmungando com meus próprios pensamentos, como um louco que aguarda durante o pouco tempo que lhe resta. Até que entendam e concordem com a sua loucura, antes que seja tarde demais. Apaguei o cigarro, peguei um casaco que estava jogado no canto da sala e fui descendo as escadas. A cada degrau vencido, sentia uma forte expectativa de me encontrar com ela logo na porta do edifício. Nulas projeções. Meti as mãos nos bolsos e fui descendo lentamente a rua de paralelepípedos lisos de cerração, fruto de uma madrugada calamitosa. O ar frio me queimava as narinas e meus olhos começaram a lacrimejar por causa do vento que bateu em meu rosto. A idéia dela ter fugido começou a perambular pela minha cabeça. Talvez seja melhor assim. Ser mais um calhorda solitário e perdido pelas esquinas dessa cidade caótica e fria de emoções.

Ao me deparar com os primeiros raios de sol que penetraram por entre minhas retinas, uma sensação de renovação tomou conta de mim. Estava livre e sem peso algum. De uma hora para outra, me tornei uma pessoa confiante. Aquilo me alegrava... Foi uma sensação de renovação estranha. Pouco importava o que se passou na última noite. Virei a esquina com passos firmes e, sem hesitar fui em direção a um bar que ainda estava aberto depois de toda aquela madrugada. Nunca fui de ir a botecos, são sujos, entupidos de perdedores e prostitutas velhas. Não tive escolha e entrei. Me sentei no balcão e esperei o barman atender. Pedi uma, duas, três doses de cachaça e esperei algo extraordinário acontecer. E, de fato, aconteceu.

Apareceu uma garota encantadora, aparentando dezenove anos e lábios virgens -como diria o velho vampiro. Veio falar comigo, me chamou por um nome que nunca tinha ouvido falar e estranhei. Fiquei pensando como uma garota como aquela estava fazendo naquela espelunca falida. Ela não era uma... Não poderia ser. Talvez fosse filha do dono do boteco ou alguma coisa parecida. Meu coração começou a bater cada vez mais forte, na medida em que ela se aproximava de mim. Chegou próxima. Muito perto, e sussurrou no meu ouvido.

- Eu te amo... Adorei nossa última noite.

Talvez ela tenha me confundido com outro. Pedi mais uma dose, virei as costas a ela e fingi estar compenetrado nas imagens que passavam na televisão muda.

- Ei! Não vire as costas para mim! Deixa pra lá... Como foi a noite querido?

Resolvi prosseguir com a conversa. Ver até onde ela iria chegar.

- Perturbadora.

- Você parece cansado. Ei, olha pra mim enquanto falo com você, que merda, qual é seu problema?

Resolvi ser direto e no mínimo sincero. Todo aquele papo estava me deixando irritado.

- O problema é que nunca vi você na minha vida, agora faça o favor de calar a boca! Eu não me misturo com essa sua laia!

- Minha laia? Vá a merda seu cretino maluco! Ficou louco mesmo. Não se lembra nem com quem trepou na última vez!

Ela saiu de perto de mim, dando longos passos num caminhar sensual. Longos passos naqueles saltos enormes. Longos saltos de pés tão delicados...

A. Michalzechen

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